Gamito
Aventureiro
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Re: Relato Passeio a Drave - 7/8 Novembro 2015
III Sábado Noite
Cheguei. Por fim. Absorvo os primeiros ares do lugar, os recantos, a beleza rude que existe naqueles muros, nas paredes em ruina, apenas sustentadas por memórias. Ainda há alguma luz que irrompe pelo lado W da garganta e alumia o lugar, não sendo por acaso, quem ergueu aquelas pedras soube onde o fazer. Para o fundo de vale convergem três ribeiras, que nesta altura do ano levam bom caudal, criando uma sinfonia que nos envolve todo o tempo e alimenta uma mata frondosa que acompanha o talvegue.
Por esta altura o Merêncio tratava das questões “diplomáticas”, é que, na prática, o que fizemos foi uma invasão. Metade da aldeia é dos escuteiros que a compraram, a outra da linhagem Martins. Os Scouts estão em permanência, e ao fins de semana e férias, recebem outros agrupamentos; têm feito algum trabalho de construção de infraestruturas como latrinas, e reconstrução de muros, paredes, caminhos... Fomos bem recebidos!
Embrenho-me nas entranhas do lugar, atravesso por entre o casario ruinoso, sobre lajedo desconchavado terminando numa eira alpendurada sobre a cascata – maravilhoso. Nas costas um paredão, com uma mesa corrida de xisto no sopé. Os ingredientes para uma boa noite estavam presentes. Até o tempo ajudou. Uma brisa amena de leste afastou a cacimba e deu uma noite seca, limpa e estrelada. Pus a mão na laje do chão, estava quente, seria ali mesmo que ficaria a tenda. Distendida a enxerga fui para a cascata, refresquei-me naquelas aguas cristalinas e bem mineralizadas pelo maciço de São Macário.
Os confrades espalharam-se pelo lugar, uns ficaram na eira, outros preferiram ir para o prado, junto ao terroire da fogueira, torneado pelas ribeiras em pequenas cascatas. Lá nos instalamos sempre acompanhados pelos scouts que iam observando aqueles espécimes de moto-sapiens, que se atreveram a descer à sossegada garganta nas suas ruidosas máquinas, rasgando o silencio do entardecer.
Entretanto chegou o Bruno com um olhar esgazeado. No alto de São Macario o grupo das ATs seguiu a XR e fizeram o track a preceito, forçando um portão que nós torneamos, resultado: uma ribanceira de requintes malvados que os encalhou por mais algum tempo. Saídos do frete, a descida às profundezas de Drave, foi a derradeira chegada. Ao lusco-fusco ainda saíram uns braços amigos para o resgate das ATs da descida infernal. Já o Miguel Pedro se preparava para tirar a toalhinha do farnel, quando assomaram Zinga&Vilas, esgazeados de cansaço, mas determinados em prosseguir, pois compromissos maiores se alevantaram – malta dura – saíram já de noite pela saída W, que desde já vos digo, que à luz do dia é coisa trabalhosa.
Noite entrada, uma luz rasgou a escuridão da ribanceira leste. Fizemos sinais de luz esperando resposta, o que sucedeu. Passada meia hora estávamos na companhia do Agostinho, que chegou afogueado, depois de ter calcorreado a ladeira pedregosa para rever velhos amigos. Foi recebido em festa. Alguém jogou uma alarvidade ao ar: “ trouxestes binho? “
Começou o repasto. Os confrades abriram os alforges e começaram a partilhar rações e iguarias. Um taxo de arroz e outro de pasta, bem condimentados, saladas de sardinha e bacalhau, grão, tomate, enchidos e queijos, tudo bem regado de brancos e tintos na boa tradição lusa. Sendo repetitivo, não deixo de me espantar com os haveres que esta boa e generosa gente, consegue transportar em tão exíguo espaço.
O jantar seguiu animado, comia-se com vontade, o corpo pedia sustento, depois de um dia enganado em tascas. Os petiscos caiam como manteiga em focinho de cão e bem regados, que isto é tudo gente avisada das maleitas da desidratação. A conversa seguia sem rumo, coisas de ocasião, que primeiro estava o taxo, e soçobrar, equivalia a encontrar-lhe só já o fundo. Quando a pança encheu a folga do cinto, a conversa tomou outro rumo, até adjuvada pelas ninfas dos taninos. Os mais velhos contaram a estória do fórum e peripécias de antigos passeios, muito ao jeito do ancião para os benjamins.
O Hugo fazia anos. Abriu-se mais uma garrafa. Brindou-se ao benjamim e ao grupo, às aventuras futuras, às vivências verdadeiras, à amizade, à natureza, a tudo o que significa o espirito trail aventura. Recordando o Rui Marques “ há vidas mais caras, mas não valem um carago! “ Por falar na “peça”, por esta altura comentava-se se apareceria ali naquele fim de mundo. Muitos não acreditaram. Sempre disse que viria e com esta fé, era ver os confrades de olhos pregados na escarpa à procura de um sinal. Para se ter a dimensão do lugar, houve quem confundisse cá de baixo, o brilho de uma estrela com um foco de luz.
Ia o repasto a meio, quando uma luz rasgou o escuro la no alto. Não era mais uma estrela cadente. Era coisa terrena, que seguia os contornos do caminho. Ora parava, ora avançava mais um pouco, num soluçar peregrino. Não havia duvida, que outra alma nesta vida terrena se aventuraria em tamanha empresa? Descer noite cerrada, àquela garganta talhada pelo diabo, pelo prazer de se juntar à tribo. Só o Rui Marques. Formamos uma comitiva de boas vindas e ainda fomos dar uma mão.
A “família” estava então reunida e a soiré continuou. O André contou as peripécias da sua viagem a Marrocos. Outros puxaram prosas de faenas passadas. Dissertou-se sobre a mecânica, modelos, caminhos, e não faltou o clássico da melhor trail, sendo que a conclusão foi, como sempre, conclusão nenhuma. E até o Miguel Pedro levantar a toalha, por esta altura, já enriquecida com tintas pituras, ainda saiu o tema na nova AT, em que o Agostinho doutamente afirmou ser uma tentativa de aproximação ao conceito da 990, deixando incomodados alguns doentes da japuna, coisa de pouca dura e logo tratada com um trago bem destilado.
Mesa levantada, mudamo-nos para o terroire, onde fartas labaredas se alevantavam, iluminando todo o vale, projectando nas velhas paredes de alvenaria lá ao longe, sombras humanas, como que numa dança guerreira, acompanhada de ecos de algazarra projetada das entranhas do vale. Os confrades, um por um, foram-se chegando às labaredas, tal qual animais enfeitiçados pela luz, mais ou menos cambaleantes e imbuídos pelo espirito do lugar.
O serão foi-se esticando, e ainda houve espaço para assar meia dúzia de chouriços, mais a ceia do Rui Marques que chegou tarde. Os escutas juntaram-se à festa, tomando parte na cavaqueira, que passou em boa parte, pela história e recuperação do lugar. Por esta altura o aniversariante estava em roda livre, numa euforia esgazeada, como quem bebe cada minuto como se fosse o ultimo. Aproximamo-nos do fim de festa ditado pelo cansaço: Os confrades foram subindo à eira, depositando os ossos na enxerga, depois de um longo e cheio dia. Como resistentes por mais uma hora, eu, Rui Marques, André e Ricardo. Senti-me a flutuar, numa sensação boa, como que a pairar sobre a eira, e antes que aterrasse com os queixos no chão, resolvi fazer um chá que me acompanhou no resto do serão morno. Resisti até à ultima em ir descançar, queria absorver até à ultima réstia a magia do lugar. Os olhos pesavam-me, soçobrei, dei por mim a dormitar.
_ Boa Noite !
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